quinta-feira, 17 de maio de 2012

As paredes falam


A humilhação teve cara, corpo e nome hoje para mim.

Ela passou a noite em claro, com medo de um pesadelo que a persegue desde a juventude. Só que é palpável, audível, até chegar a ser insuportável. Minha avó materna nem deve lembrar de quando o alcoolismo dos outros entrou na vida dela pra ficar. Aguentou a brutalidade do marido, potencializada pela bebida, até ele ficar velho. No meio do caminho, três dos filhos mergulharam no vício, onde estão até hoje. Posso estar errado, mas um deles não sai mais de lá... Lembro com choque da minha mãe dizendo: "Ela nunca recebeu carinho. Por isso não tem o costume de ser bem tratada." Meu avô morreu há pouco mais de um ano. Meu tio, o mais trabalhoso de todos, faz questão de matar a cada dia uma fração da própria vida e outra da vida da própria mãe.

Não faz muito tempo, era admirável a coragem com a qual encarava a revolta do filho, com o dobro do tamanho dela, mas com nem metade da força que ela possui. Eu, criança e adulto, com medo ficava e fico diante das muitas situações. Agora, o que me chamou a atenção foi o medo. Com depressão há alguns meses, minha avó fechou a porta do quarto ontem à noite e ficou na rede, calada, enquanto o filho falava alto e sozinho em casa, fora de si de tão bêbado. Ela não dormiu. Minha mãe, ao lado dela, também não. Eu, num quatro próximo, coloquei música alta nos fones de ouvido e pouco escutei até adormecer já no meio da madrugada. Poucas horas depois, acordo com o som de um desabafo através das paredes. Mamãe "vomitando" os desaforos que teve de aguentar e que nem um chá conseguiu fazer com que descessem goela abaixo e fossem digeridos. Falou um tanto, ouviu outro. Na ira, ela - também enfraquecida - fortaleceu-se.

Irmãos mobilizados para salvar o resto de vida ao lado da mãe. Sempre de perto, eu observava tudo. Minha avó numa cadeira de balanço velha, a mesma de onde não saiu durante o velório do meu avô meses atrás. Cabeça sempre caída, olhar triste, fala pouca, cabeça longe, sem um sorriso sequer. Ela ouvia muita gente encaminhando a vida dela, sem pedir licença. Desconfiada, perseguia os rastros das armações dos filhos. Uma que cochichava com a outra, que telefonava para outro, que esperava outro chegar da casa próxima. Tudo a levava para uma decisão. E, antes que fosse sugerida, fez questão de publicar em poucas palavras: "Eu não aguento mais isso. Quero denunciar."

E assim fez. Depois de uma tarde de desabafo na delegacia do idoso de Natal (RN), voltou pra casa com um boletim de ocorrência nas mãos, disposta a dar um fim nos abusos de um dos filhos. Os outros, em escalas diversas de envolvimento, fecharam na decisão de que passou da hora de o irmão sair de casa. Eu fiquei com a impressão de que a disposição da minha avó foi fachada. Ela foi levada àquilo pela pressão. Esperta como a vida ensinou a ser, jogou água fria na situação até que ela retome as energias para participar do próximo espetáculo.

Naquele drama todo, aprendi um pouco mais sobre o que é uma mãe. Mesmo sem perceber, Dona Creuza cede um pouco da vida para proteger um filho que, aos olhos do mundo, não mereceria. Um preço caro, mas que não poupa. Ela responde com o bem, o mal que recebe. Admirável e assustador ao mesmo tempo. Que o bem vença essa guerra.