sábado, 25 de outubro de 2008

No ônibus


Não é a primeira vez que vejo aquela criança de cabelos queimados do sol, roupa simples - na maioria das vezes sujas -, um pequeno limpador de pára-brisas na mão. Calculo que ele tenha uns quinze, dezesseis anos, não mais que isso. As bases deste cálculo são a fisionomia e o tom da conversa.

Ele sempre chega quando o ônibus da linha 910 estaciona em frente ao ponto no qual espero para ir ao trabalho na TV Paraíba, em Campina Grande. Jamais o vi pagar para ter acesso ao interior do coletivo. Os motoristas permitem a sua entrada por medo de que possam ser vítimas de alguma maldade do garoto. Ele entra e fala com todo mundo, com uma simpatia natural e um dom invejável para a comunicação. Pede moedas, às vezes com a desculpa de que precisa comprar material de trabalho. Aparenta ser um daqueles moleques que ficam parados no sinal à espera de um motorista que queira deixar limpo o pára-brisas do carro. Estranhas, as pessoas retiram do bolso moedas de pequeno valor e as entrega ao garoto. "É melhor eles pedirem do que nos roubar", justifica um senhor de idade que está sentado à minha frente. De longe, ele fita o garoto. "Parece que ele não é drogado. Deve cheirar lá a sua cola...", avalia.
Pouco tempo depois, este mesmo senhor mudaria um pouco a opinião que tinha acerca do menino. Ele vira que o garoto ao descer do ônibus deixava transparecer duas facas presas à cintura. "Olha mesmo! Eu elogiando o danado e ele com duas facas...", bradou. Outro senhor que estava ao meu lado suspirou: "Tá vendo só? É por isso que costumo sempre dar uma moedinha. A gente nunca sabe o que eles podem fazer se não dermos nada."
Por um instante cheguei a refletir sobre essa atitude da sociedade em aceitar que as pessoas sejam obrigadas a dar dinheiro sob o risco de sofrerem algum atentado contra a integridade física. Mas logo, assim como o senhor da frente, mudei a opinião. Duas cenas das quais aquele moleque era ator me chamaram mais atenção do que as facas que portava.
A primeira foi ver que do mesmo local que conversava com uma menina de uns três anos, ele tirou do bolso um boneco que dizia ter comprado para o irmão mais novo. Era um pequeno homem-aranha de borracha que ele fez questão de mostrar como se fixava em qualquer superfície. Correu para o final do ônibus e colou o boneco que começou a descer aos poucos na superfície. As pessoas dentro do ônibus olhavam com interesse a demonstração. A outra foi a prestatividade com que ajudou uma senhora de idade que estava carregada de bolsas pesadas. Chamando de "vó", ele desceu do ônibus com as sacolas e as entregou à "avó" enquanto todos - inclusive eu - ficávamos olhando à espera que ele fugisse com os pertences da senhora.
Não posso pensar que aquele menino seja apenas um bandido após ter presenciado uma atitude tão peculiar a uma criança. O que conheço dele são somente as impressões daqueles quinze minutos no ônibus. Quem sabe dos sonhos daquele moleque? Recuso-me a taxá-lo do que quer que seja. Não tenho esse direito e nem o quero ter. Aprendo muito observando, inclusive que não posso estereotipar as pessoas pela superficialidade.

4 comentários:

Jerller Alves disse...

A sociedade em que vivemos não nos permite confiar plenamente nos outros,mantendo sempre uma atitude de desconfiança perante tudo e todos.Parabéns pelo texto.

Gil de todos os dias disse...

O mundo à nossa volta é fonte inesgotável de palavras. E você é um bom observador. Esse blog vai ser lindo!!
beijo grande!

Mariah Araújo disse...

QUE TEXTO BOM.vc, eu, gilmara e nossos ônibus. beijos

Unknown disse...

Os nossos impulsos nos faz perder o limite da consciência e da tolerância, os conceitos pré-estabelecidos pela sociedade taxam, incriminam pelas aparências sem conhecer a esseência de cada ser.
Ao invês de parecer é preciso ser de fato humano!

Seu texto retrata bem a forma desumana que a sociedade olha as pessoas!

Meus Parabéns pelo belíssimo texto!